casa da lulu

segunda-feira, novembro 08, 2004

(...)
Quem olhasse de longe, teria certeza de que vivíamos confissões. E, no fundo, era isso que fazíamos. Ele, me roubando, revelava sua miséria e sua dor. Sem falar no espanto que percorria sua cara, os olhos livres, as mãos prontas. E eu, inerte, lhe confessava as sobras, o supérfluo, as cadeiras vazias reverenciando a mesa. Enfim, era somente uma bolsa de couro cru entupida de inutilidades fundamentais.
Foi a primeira troca. A vantagem estava comigo.
De que valeria uma carteira cheia e essa vida aberta para o nada? Éramos dois pensamentos, bóias luminosas em alto-mar. Ninguém a ser salvo, a correnteza. A voz dele timbrava o escuro e o escuro engolia as sílabas, os
ss, as palavras truncadas que atirava na minha cara. Que tá olhando, hein dona? Nunca viu não, é? A voz dele batia na minha pele e eu deixava escorrer, fazendo ele pensar que comandava o espetáculo. Verdadeiro circo, pau e cerco. Num se move não, moça, esse bicho aqui num gosta de conversa. Ele chove bala e fura seu corpinho todo.
Foi o segundo tempo. Ele falou "corpinho todo". E me olhou mais fundo, vagando o escuro, metendo a mão no silêncio e abrindo a porta sem bater. E ele logo percebeu que estávamos desaguando no meio do mar. E ali boiávamos, lado a lado, náufragos de uma solidão ao contrário. A fome dele não parecia ter destino. A minha esperava, estava aprisionada e gritava no cerrado. Depois de tanta água, de tanto sal, a seca rachando a terra, flor enfiada no meio do barro, resistindo sabe-se lá o quê.
(...)

trecho de Flor de Cerrado, conto de Maria Amélia Mello, pulicado em Os cem melhores contos brasileiros do século, selecionados por Italo Moriconi, Ed. Objetiva. E orignalmente publicado em Às oito, em ponto, Ed. Max Limonad.