casa da lulu

domingo, setembro 12, 2004

Eis a transcrição da entrevista de Contardo Calligaris na Bons Fluidos de setembro.


A ultima viagem

Esta reportagem é dedicada a um tema muito pouco prestigiado: a morte. Quando não está no cinema ou nos jornais, esse assunto - tão amplo quanto profundo - causa, de pronto, aversão. Mas não feche a revista. Você não é o único a sentir o maior dos medos deste nosso tempo. Viver bem é a principal condição para aceitar o fim. Como aponta Contardo Calligaris, psicólogo italiano radicado em São Paulo, nesta entrevista a Bons Fluidos exclusivamente sobre o tema, que envolve felicidade, amor e muito prazer.
Vivemos e depois morremos. Certo? Errado. A morte não vem depois da vida, mas acontece o tempo todo, em conexão simultânea com o prazer de viver e de amar.
Para falar desse assunto tão amplo e profundo, escolhemos o psicólogo italiano Contardo Calligaris por vários motivos. Além de ser psicanalista, doutor em psicologia clínica, colunista do jornal Folha de S. Paulo, autor de seis livros e membro do Instituto de Estudos da Violência de Boston, ele cresceu entre os escombros da Segunda Guerra Mundial. Adolescente, fugiu para a Inglaterra, durante dez anos manteve consultórios em São Paulo, Boston e Nova York (ao mesmo tempo!) e viveu em vários países. Essa história de vida o presenteia com uma visão multicultural muito ágil e uma larga experiência em despedidas.
Durante duas horas, ele falou da morte e dos aspectos que envolvem a última viagem -- dos fatores históricos ao luto, do sexo à genética, do amor à ordem natural dos ciclos.
Calligaris revela o que faria se tivesse apenas um dia de vida e provoca: "O que você não deixaria de fazer se vivesse para sempre?"


Bons Fluidos - Pois é, ninguém quer saber da morte. A história explica esse medo?
Contardo Calligaris - Esse é um fenômeno recente. Talvez desenvolvido nos últimos 200 anos. A partir daquele momento, culturalmente o indivíduo tornou-se mais importante que a comunidade e a morte tornou-se apavorante. Por exemplo, para o homem da Idade Média saber da morte e prepará-la era muito importante e tranqüilo. A pessoa desaparecia, mas o sistema, a família, a cidade, a tradição, tudo continuava. Era confortante, pois a memória estava preservada, não era o fim de tudo. Porém, se hoje eu dissesse você vai morrer, mas São Paulo e a avenida Paulista vão continuar existindo, isso não seria um consolo.


BF - O que provocou a mudança do foco coletivo para o individual?
CC - Ela se preparou ao longo do fortalecimento do cristianismo, porque o deus cristão lida com cada uma das pessoas. Não é o deus de romanos, paulistas, cariocas - é o deus que fala com você. Esse foi um grande impulso para o individualismo. Depois vieram outros fatores, como a descoberta das Américas e as correntes de imigração, pois o imigrante é um desterrado e sempre carrega o sentimento de solidão. Antes disso, os cemitérios eram dentro das cidades, na praça ao redor da igreja central. A idéia de levar os mortos a lugares distantes do mundo dos vivos é moderna e traz inquietação, temor, espanto.


BF - A própria morte virou um fantasma porque ela é a grande niveladora?
CC - Ela é o fim do indivíduo, e esse é o maior medo. Há cada vez mais pessoas que sentem, de maneira aguda e dolorosa, não só a proximidade da própria morte mas também quando o mundo vai acabar.


BF - Mesmo sabendo que isso está previsto para daqui a 15 milhões de anos?
CC - Claro. Tanto quanto a morte individual, essa é uma fonte de angústia impressionante, pois é uma imagem da anulação definitiva. A complicação maior é, então, dar significado à vida como indivíduo, o que conta é o que eu fui capaz de realizar. Deixamos filhos, amigos, marcas, mas a gente não se consola com isso.


BF - É fugaz também, não é?
CC - Sim. Poderíamos nos sentir bem pensando que produzimos em nossos filhos efeitos imponderáveis e muito grandes. E nem sempre são os melhores... (risos) Por piores que sejam, deixamos marcas nos amigos, nos filhos dos amigos, e alguma coisa disso vai passar para os filhos deles. É preciso ter uma sabedoria muito grande para se consolar com isso, o que não é a sabedoria de nossa cultura.


BF - É uma sabedoria oriental?
CC - Sim, oriental. Absolutamente certa, e também uma sabedoria da cultura ocidental de outras épocas.


BF - Você disse que já teve um câncer. Saber que vai morrer ou ter uma doença grave mudam alguma coisa?
CC - Não quero falar de minha experiência pessoal. Detesto essas referências, que reforçam os traços narcisistas a fim de servir de exemplo para alguma coisa. Mas é claro que existe diferença entre o saber vago e geral da mortalidade e uma informação específica sobre a limitação do tempo de vida. Normalmente, estando fora da questão, pensamos que ou nos mataríamos logo ou transformaríamos o resto de vida em uma grande orgia. Mas isso, de fato, não acontece. As pessoas que acompanhei de perto não quiseram deixar de viver. Elas aproveitaram para se preparar (não apenas indo ao cartório determinar quem seriam os herdeiros) e tiveram tempo de se despedir das coisas e das pessoas, de fazer o que achavam essencial. Pode ser triste, mas não tem nada a ver com a depressão. E se foram em paz.


BF - Isso vale para os jovens?
CC - Saber sobre a morte aos 18 anos não é a mesma coisa que aos 80. A velhice traz a sensação da proximidade do fim sem drama, de forma mais natural. Nessa idade, é mais fácil ter acesso a uma espécie de sabedoria que diz: se tenho de aceitar o fato, a única coisa a fazer é alimentar a sensação de ter vivido bem a vida que tive. Já aos 18 anos, a pessoa vai ter mais dificuldade com o real, vai achar que está sendo privada de uma parte importante da experiência e terá de, ao menos, pensar em descer do ônibus bem antes do fim da linha. A morte precoce é mais complicada, mas no fundo o bem-vivido não depende da idade.


BF - Como assim?
CC - A dificuldade é o conceito do bem-viver. Há três ou quatro gerações, isso queria dizer ter criado família, filhos, ter feito o possível para prover e educar. Hoje, não basta. Temos de cumprir o dever de ter sido feliz. Não há nada de babaca nisso. Não quer dizer ficar apenas rindo e evitar os sofrimentos, mas carregar a sensação de que o tempo vivido foi uma experiência com momentos tristes e alegres e, por sua intensidade, valeu a pena.


BF - O que significa esse "valeu a pena"?
CC - É difícil dizer. Acho que é um pouco o que espero que a psicoterapia produza, que você seja feliz no sentido corriqueiro da expressão, que se autorize a viver plenamente, inclusive as coisas mais dolorosas. A experiência da vida merece ser intensa. E isso também não depende da idade. Já me aconteceu de trabalhar com pais de adolescentes que morreram, e com eles aprendi algo importante que vale para pais de adolescentes que estão muito bem: os jovens não são seres para o futuro, não devem sacrificar os prazeres desta época para um dia serem adultos. Não, os adolescentes são pessoas como nós, que estão vivendo o presente. Isso dá o justo equilíbrio na hora de educar, limitar, decidir sobre a permissão de algo. É interessante pensar se até hoje seu filho levou uma vida que valeu a pena ou está esperando os 25 anos para começar a ser gente. Claro, isso não significa deixar que nosso adolescente se torne um Cazuza. Digo isso sem nenhuma crítica, pois acho que ele teve uma vida possível, porém a intensidade foi destrutiva. E, mesmo assim, morreu dizendo que tudo tinha valido a pena.


BF - Há uma parábola budista em que o discípulo pede que o mestre lhe dê uma bênção. E este diz: que seu avô morra antes de seu pai, que seu pai morra antes de você, que você morra antes de seu filho. O aluno protestou, pois queria uma bênção e não palavras de morte. Então, o mestre disse: a ordem natural é a maior dádiva da vida.
CC - Sim, é engraçado. Há mesmo uma ordem natural das coisas. Somos condenados a fatores genéticos e somos moldados pela cultura a fazer, mais ou menos, o luto de nossos pais. Ninguém sabe fazer o luto dos filhos. Além da dor da perda, essa inversão atormenta muito quem fica.


BF - Mas existe algum luto fácil?
CC - Essa é outra fase que perdeu o sentido em nossa cultura. Nos primeiro tempos do sucesso do antidepressivo Prozac, uma das indicações possíveis era prevenir o luto. Isso quer dizer: meu pai está morrendo, então tomo os comprimidos de modo que eu possa passar com mais leveza pela morte dele. Os efeitos não são mágicos. Ninguém sai cantando e rindo atrás do caixão de alguém que amou, mas o pior é quando funciona!


Aí voltamos à questão do viver plenamente. As perdas fazem parte da vida e precisam ser vividas em toda sua intensidade. Não é necessário que se fique melancólico o resto de seus dias porque morreu o cachorro. Mas é necessário poder ficar triste, e triste mesmo, porque morreu o cachorro, pois há pessoas para quem os animais são membros da família. Se você coloca uma tampa química em sua dor, seja qual for, será mais nocivo porque algum dia esse sentimento de luto voltará de forma inesperada.

BF - Querer se livrar logo da dor pode prolongá-la.
CC - Uma das coisas que me chamaram a atenção aqui é a rapidez com que os mortos desaparecem. Por questões de higiene, em 24 horas acontece o velório e dá-se o enterro. Se alguém mora longe, não há tempo de chegar e a despedida fica mais difícil. Na Itália, os velórios são feitos em casa. São os filhos, ou os mais íntimos, que vestem o falecido e demora-se, no mínimo, dois dias até o funeral. Esse tempo é importante para a emoção e a realização da despedida. Quando meu pai morreu, foi assim. Eu estava nos Estados Unidos, cheguei no dia seguinte e fiquei conversando com ele durante a madrugada. Se não tivesse feito isso, teria chorado e sentido muito mais a ausência.


BF - Acreditar que há vida após a morte facilita a aceitação?
CC - A comunicação com os mortos feita no espiritismo alivia bastante a dor de quem fica. Mas não acredito muito que a idéia de vida após a morte funcione. A não ser para os budistas genuinamente orientais. Isso não vale para os convertidos. Para nós, ocidentais, mesmo acreditando em reencarnação, carma, paraíso, sempre existe a coexistência dessas idéias com a morte como ponto final. Entre as pessoas que conheci, não me pareceu que a religião fizesse diferença na maneira como lidaram com a morte, mas facilitou o luto.


BF - Já pensou o que faria se só tivesse um dia?
CC - Bom, acho que faria o que faço na rotina. Certamente, ter apenas um dia seria um problema porque minha família está espalhada, meus três filhos estão em vários cantos do mundo e em 24 horas não conseguiriam chegar aqui. Acho que eu ocuparia um tempo montando uma teleconferência para poder me despedir deles.


BF - Como no filme canadense Invasões Bárbaras, a tecnologia pode fazer bem nesse momento.
CC - É uma facilidade. Tentaria organizar isso e também uma forma, a carta talvez, de me despedir dos pacientes. Acho que o dever de quem morre - e até o prazer de quem morre - é encorajar os outros a viver da melhor maneira possível. Do ponto de vista dos prazeres, sairia na rua conversando com as pessoas. Em um dia, não escreveria testamento ou pediria empréstimos. (risos) O que não sei é se teria ânimo de transar. Será que tem clima?


BF - Sei lá, nunca passei por isso! (risos)
CC - Por ter viajado tanto, tenho uma certa prática com despedidas e, em geral, transar antes de ir para o aeroporto sempre foi péssimo.


BF - Então, você está vendo a morte como a última viagem?
CC - Claro. E nessa hora imagino que só transaria se tivesse clima e não porque o tempo está acabando. A transa não é higiênica, não é para libertar os pensamentos eróticos na hora de estar com são Pedro. (risos) Agora, sem dúvida, gostaria de estar perto da pessoa que amo.


BF - Jean Yves-Leloup, filósofo e teólogo francês, afirma que as pessoas não têm medo de morrer, e sim de amar. Quanto maior a entrega, maior a aceitação da morte. Concorda?
CC- Não. Do ponto de vista do amor romântico, não há entrega, pois quem ama idealiza o outro a seu modo e o acha maravilhoso porque tem a capacidade de se ver refletido nele. Dessa perspectiva, o sexo tem mais a ver com a entrega do que o amor. Talvez isso justifique o termo francês la petite mort (a pequena morte), cunhado (pelo escritor Georges Bataille, no começo do século 20) para definir o orgasmo. Aqui não é apenas uma experiência sensorial, mas o momento em que somos reduzidos ao corpo. Uma boa transa representa um certo apagamento de vergonha, pudor, nojo, limites, de traços do eu. O mesmo ocorre na morte.


BF - O que acha do medo do envelhecimento?
CC - É engraçado. Pessoas de 30, 40 anos acham que um corpo de 70 não pode ser erótico. Isso é falso, pois o corpo envelhecido pode ser desejável. E em qualquer idade, se você não acha seu corpo desejável, isso é um problema. Ouço cada vez mais homens detestando a transformação feminina, em que uma mulher de 50 anos têm uma máscara de porcelana sem as rugas próprias do amadurecimento. Essa busca pela imagem intocada, em homens e mulheres, tem mais a ver com a relação das mulheres com outras mulheres e dos homens com outros homens do que com os parceiros. Pior do que isso, acham que se tornar invejável por outros do mesmo gênero é mais importante do que ser desejável!


BF - O que você acha da tecnologia genética que permite saber quais serão nossas tendências a doenças e revelam, já nos primeiros anos de vida, as prováveis causas da morte?
CC - Acho que psicologicamente não muda nada, porque os componentes acidentais que influem na morte são inúmeros e imprevisíveis. Porém, do ponto de vista político, essa perspectiva é perigosa. Pois, se aos 14 anos você descobre que tem tendência a ter câncer de mama, por exemplo, o seguro-saúde pode cobrar mais. E isso pode dificultar que você arrume um emprego, já que será possível escolher funcionários que não apresentem o problema. É um fator de controle social preocupante.


BF - O que diria a quem está acompanhando alguém próximo da morte ou que está de luto?
CC - Acho que é o momento de pensar na vida que essa pessoa teve e tentar reconhecer o valor da experiência em si. Quanto ao luto, é preciso não evitar a despedida. Por exemplo, perdi minha mãe e, três meses depois, meu pai, ambos idosos. Meu irmão e eu ficamos 15 dias desfazendo a casa onde moraram por quase 50 anos. Achamos cartas escritas no tempo em que namoravam, muitas décadas de diários escritos por ele e descobrimos que houve uma separação da qual nunca desconfiamos. E muitos outros registros de quem foram e como tinham desfrutado bem da experiência de viver, que foi muito divertida e plena. Não havia o que lamentar. Ao contrário, a oportunidade de fazer o luto dessa forma nos deixou felizes, pois o foco não era mais nossa perda. É um grande alívio olhar a vida de quem morreu como uma experiência válida. Aliás, esta é a palavra que considero ideal para o leito de morte: "Valeu!"


[para Sergio Fonseca]